Conferência no RJ debate indicadores de cidadania
Por Camila Nobrega e Rogério Daflon
Do Canal Ibase
Com 12,9 milhões de analfabetos com 15 anos ou mais – o equivalente a 8% da população – o Brasil é o oitavo país do mundo com maior taxa de analfabetismo entre adultos, de acordo com a Unesco. O dado nacional, no entanto, esconde situações alarmantes em muitos territórios e oculta, como de praxe em estatísticas e dados absolutos, a complexidade da realidade e de sua característica multidimensional. Seguindo o mesmo dado, uma das principais medidas de acesso à educação, a situação se agrava, se o olhar se torna local. No município de Silva Jardim, no estado do Rio de Janeiro, por exemplo, a taxa de analfabetismo chega a 13,24% da população. Trata-se da mesma cidade que carrega o preocupante percentual de 36,2% de moradores em condição de pobreza, com renda domiciliar variando de zero a R$ 140.
De que forma a cidade sente e vivencia esses dados? E a sociedade civil se organiza para mudá-los, influenciando o poder público, tomando rumos próprios? Essas são algumas das perguntas que o Sistema de Indicadores de Cidadania (Incid), desenvolvido com financiamento da Petrobras, se propõe a responder – ou melhor, a contribuir com elementos para melhorar a resposta, enfrentando as dificuldades do tema. O sistema, criado pelo Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase), faz o exercício de observação desse tipo de número do ponto de vista da cidadania e dos direitos humanos. Os caminhos para tornar estes dados palpáveis e colocá-los em função das lutas sociais foram debatidos na Conferência Cidadania Efetiva e Direitos Humanos, realizada nesta terça e quarta-feira, dias 26 e 27 de agosto.
Pesca em risco
Um dos depoimentos mais marcantes da Conferência, que conta com um site com documentos específicos sobre os temas apresentados foi o do pescador Flavio Lontra, da Associação de Caranguejeiros e Amigos de Itambi. Ele ressaltou que o pescador artesanal é uma categoria invisibilizada no país. E que hoje, no Rio de Janeiro, a área de pesca só diminui, em função da poluição e de grandes empreendimentos em torno da Baía e Guanabara e área costeira. Segundo uma pesquisa da UERJ, havia em 2010, apenas 12% de área para a pescal na Baía de Guanabara. “Arrisco dizer que de lá para cá esta área diminuiu. Hoje, os cerca de 15 mil pescadores artesanais que vivem da pesca na Baía enfrentam as tubulações de esgoto de empreendimentos do entorno da Baía, a competição da pesca esportiva, poluição jogada pelos estaleiros, tubulação de esgoto de Paquetá. Espero, sinceramente, que os indicadores produzidos possam servir para que o poder público use de forma a criar possibilidades para os pescadores e outras populações impactadas, e não para fazer marketing de qualquer espécie. Seria uma grande irresponsabilidade diante dos problemas da região atingida pelo Comperj (Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro)”.
Mais de 60 indicadores em 4 dimensões
Professor do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (Ippur), Henri Acselrad trouxe reflexões que enriquecem o debate da constante qualificação dos índices do Incid. Para ele, os interesses econômicos, ilustrados pela presença das grandes corporações nas cidades, e eleitorais podem querer promover em determinadas regiões o que ele chamou de associativismo neoliberal, em que os interesses do capital sempre vão ficar à frente das prioridades das populações, que ainda correm os riscos de terem seus modos de vida comprometidos em função de projetos nas quais teve a participação alijada. O professor do Ippur pôs, assim, em questão o conceito de crescimento econômico, sobretudo o tão propagado na classe C. “O consumismo gera acumulação de rejeitos, lixo mercantil e endividamento das famílias”, acrescentou ele.
O Incid tem como objetivo trazer à superfície as prioridades dos 14 municípios impactados pelo Comperj, no qual se visa a expandir a capacidade de refino da Petrobras de derivados. Um dos objetivos é evidenciar violações de direitos sociais e humanos nessas localidades. Para isso, os indicadores do Incid são medidos em quatro dimensões: cidadania percebida, cidadania em ação, cidadania garantida e cidadania vivida. É possível acompanhar detalhes de cada dimensão e a metodologia de cálculo no site do projeto, incid.org.br. “Foram criados, em pouco mais de dois anos de trabalho da equipe de pesquisadores, quase 70 indicadores para aferir o estado da cidadania dos 14 territórios de abrangência do Comperj”, Cândido Grzybowski, diretor do Ibase e responsável pelo projeto.
O representante do IBGE, o cientista político Antonio Carlos Alckmin, afirmou que indicadores vindos da sociedade civil também se tornam referência para o poder público: “Considero o Incid uma ferramenta robusta, acho que precisamos dialogar, apresentar os indicadores dentro do IBGE.” Em seguida, assumiu alguns problemas na formulação de dados:”Na década de 1980, houve antropólogos no IBGE. Isso se perdeu. Sem esses profissionais, fica difícil fazer levantamentos, por exemplo, com populações de rua, entre outras. Temos muito a aprender com uma ferramenta como essa, pela via da cidadania. Um único senão é quanto ao quesito eleitoral, que pode ser abordado de forma mais ampla”.
Datasus: dados para gestão, não para cidadãos
Ou seja, quanto mais informação, melhor. A metodologia do Incid traz esse debate naturalmente. Na área da saúde, em que a referência de dados nacionais é o Datasus (Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde), do Ministério da Saúde. uma distorção já foi percebida. Haroldo Lopes, coordenador de disseminação de informação do órgão, admitiu que os dados públicos não foram criados para serem acessados pela população: “Os dados do Datasus (Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde) não foram organizados visando a garantir direitos, mas, sim, a atender as demandas da gestão. O processo de redemocratização do país, porém, também se reflete na coleta e processamento de dados. O trabalho dos movimentos sociais, em ações como essa do Incid, são referências importantes.”
O médico sanitarista Jorge Kayano, pesquisador do Instituto Pólis, acha, contudo, que esse trabalho tem de ser ainda mais levado em conta. “Os movimentos sociais de cada território analisado pelo Incid também devem participar cada vez mais das modificações dos índices existentes ou criações de novos. Assim, os indicadores já seriam uma forma de trabalho de base consistente nos territórios, como instrumento da luta por cidadania”. enfatiza Caiano. “Sei que o Incid já faz esse tipo de trabalho, mas, a meu ver, deveria ser intensificado. Seria interessante, por exemplo, uma pesquisa qualitativa relacionada à participação das 14 cidades do Comperj nas manifestações de junho e julho, levantando, assim, a base associativa de cada município. E é importante pensar em como trabalhar os dados. O número de sindicalizados, por exemplo, aponta mais do que o número de sindicatos em um território.”
Átila Roque, da Anistia Internacional, também concorda que a população dos territórios deve ser o principal protagonista da formulação destes dados. Ele ressaltou: “É um instrumento de garantia de direitos, com novas prioridades e novas hierarquias das informações. Os indicadores são uma forma de quebrar silêncios.”
Roque deu um exemplo absolutamente chocante. Os números de jovens negros nas periferias é imenso, mas deve ser ainda maior do que as estatísticas divulgadas. “Há estados do Brasil com estatísticas de letalidade totalmente incompletas”. Tal quadro na segurança pública, acrescenta ele, dificulta uma política pública que é prioritária.
O Incid, assim, é um instrumento para dar bases à política pública, apontando, com mais clareza, as urgências nos territórios. A informação sobre água inadequada, um direito básico, ilustra bem isso. Comparando a situação dos 14 municípios impactados pelo Comperj, é possível observar Teresópolis como o pior na lista dessas cidades no que se refere aos domicílios com abastecimentos com água inadequada, levando sérios riscos à saúde. Na seqüência, Magé, com 14% nesse índice, mostra um território que sofreu com o crescimento desordenado de sua população.
Os dados estão disponíveis no site do projeto e podem ser utilizados com qualquer pessoa. “Esses dados dão base aos moradores. Silva Jardim, por exemplo, e Casimiro de Abreu, são dois municípios do Rio de Janeiro que ficam lado a lado e possuem uma diferença absurda nos indicadores. Enquanto Casimiro tem bons índices, os de Silva Jardim são péssimos. Há algum problema de gestão aí. Por outro lado, é importante ter cuidado com o uso político desses dados, acho importante o Ibase e os movimentos sociais problematizarem isso.”, disse Tainá Miê, moradora de Silva Jardim.
Durante dois dias de conferência, foram ouvidos muitos elogios, sugestões e críticas, para aprimorar o sistema de indicadores. A partir de agora, será um trabalho longo e árduo para a construção de novos indicadores e modificação do que existe, com o objetivo de garantir dos direitos sociais e humanos. Mas o pontapé está dado.
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