Dados revelam que AAI ainda sofre com violações do Direito à Educação Infantil

No Brasil, milhões de crianças têm sido privadas do direito à educação infantil. Há muito tempo, a ampliação desse acesso é uma luta protagonizada pelo movimento de educação, com a participação fundamental de feministas que integram o movimento de mulheres. Essa luta parte do reconhecimento de que as crianças também são “sujeitos de direitos” e que cabe ao Estado assegurar a elas serviços de cuidados gratuitos e o direito à educação de qualidade em horários integrais e contínuos. É também uma reivindicação que está diretamente vinculada à luta histórica das mulheres pela autonomia e direito à igualdade nas condições de trabalho e renda. Dessa forma, essa triste situação atinge também a maior parte das famílias de trabalhadores e trabalhadoras brasileiras, pois envolve questões como emprego, saúde, segurança, além de ser o primeiro contato da criança com o universo da educação.

Partindo desse pressuposto, o Incid apresenta seus novos Indicadores de Direito à Educação: Situação da Demanda por Educação Infantil e Direito à Educação: Garantia da Oferta de Creches na AAI (Área de Atuação do Incid).

Esses novos indicadores foram desenvolvidos pelo Incid, a partir de uma demanda apresentada na Roda de Diálogos de Mulheres (http://migre.me/pLIWm), realizada em agosto de 2013, no município de São Gonçalo, com a participação de coletivos e organizações que atuam na defesa dos direitos das mulheres nos municípios de São Gonçalo, Magé, Niterói, Saquarema e Maricá. Na ocasião, ao discutirem os dados reunidos para construção do indicador Situação da Desigualdade de Gênero no Acesso ao Emprego (http://migre.me/pLI5g) e Situação da Desigualdade de Gênero na Remuneração (http://migre.me/pLI0t), as participantes afirmaram que uma das maiores dificuldades para se qualificarem profissionalmente e/ou terem acesso ao mercado de trabalho formal é assegurar que seus filhos e suas filhas frequentem creches, especialmente em tempo integral. Segundo elas, havia grande carência de oferta de creches e pré-escolas na região.

A partir desta constatação, o indicador de Situação da Demanda por Educação Infantil foi construído de acordo com o cálculo da taxa percentual obtido a partir do total da população de 0 a 6 anos dos municípios, em relação ao número de crianças que frequentam estes segmentos escolares. Com informações do Censo Demográfico de 2010 do IBGE, ele indica a taxa de crianças que não frequentam a educação infantil, apontando a demanda potencial para assim tornar evidente a violação deste direito. Direito esse, exercido através do acesso à creche, para crianças de 0 a 3 anos, e à pré-escola, para crianças de 4 a 5 anos.

De acordo com o Incid, os dados de Situação da Demanda por Creche revelam uma situação alarmante: 77,7% das crianças na idade entre 0 e 3 anos estão fora das creches, o que demonstra que não se chega a 40% de cobertura da demanda potencial em nenhum dos municípios. Mesmo em localidades, como Niterói e Nova Friburgo, que apresentam as menores taxas (64,47% e 65,44%, respectivamente), os números ainda são muito ruins – pois indicam que, do total da população de 0 a 3 anos de cada um destes municípios, apenas 35% frequenta creches.  Já os municípios de Itaboraí e Tanguá apresentam as piores taxas, deixando de fora das creches quase 90% da população total de 0 a 3 anos. 88,42% e 89,38% das crianças não frequentam as creches desses municípios.

Garantia de Creches

Apesar de os dados apresentarem uma alta demanda potencial por creches na AAI, o Indicador de Direito à Educação: Garantia da Oferta de Creches – que tem por objetivo revelar o esforço do poder público em assegurar a oferta – revela que, ainda que em todos os municípios da AAI o poder público garanta creches para a população, nos locais com maior densidade populacional, como São Gonçalo e Niterói, há um número exorbitante de creches particulares. Diante disso, é possível inferir que não é efetiva a garantia desse direito nesses municípios, sendo desigual a possibilidade de acesso às creches, pois é assegurada, em sua maior parte, por investimento do setor privado. A mesma situação pode ser observada em Teresópolis, que também possui mais que o dobro de creches privadas (44), em relação às creches públicas (18). Em Cachoeiras de Macacu, Saquarema e Maricá, há certa paridade no número de creches públicas e privadas. No primeiro município há um maior número de creches particulares e nos demais, há maior oferta do  serviço público. Porém, de acordo com a Cidadania Ativa dos municípios de Magé, Saquarema, Maricá, Niterói e São Gonçalo, a oferta é insuficiente para atender a população.

Este é um indicador que foi construído a partir do levantamento do número total de creches existentes nos municípios, diferenciando as que são públicas daquelas que são privadas, baseado nos dados do INEP (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira), tomando como referência o Censo Escolar de 2013.

A oferta de creches se consolida enquanto política pública principalmente a partir da década de 1970 no contexto das lutas unificadas dos movimentos sociais no Movimento de Luta por Creches. Na década de 1980, esta luta ganha nova força quando os movimentos sociais passam a propor que as crianças e adolescentes sejam entendidos como sujeitos de direitos, o que se contrapõem a noção de ‘objetos de tutela’. Propõem assim que os cuidados com as crianças devem ser compartilhados entre homens e mulheres, e também com a sociedade a partir de políticas públicas que implementem serviços de cuidados gratuitos e de qualidade em horários integrais e contínuos.

Pré-escola

Os dados apresentados sobre a Situação da Demanda por Pré-escola são um pouco melhores, mas ainda assim são reveladoras de uma situação de violação de direitos. 42,21% das crianças de 4 a 6 anos estão fora da pré-escola, em toda a AAI. As piores taxas foram encontradas nos municípios de Guapimirim (59,42% ) e Teresópolis (59,38%). Já Silva Jardim apresenta a menor taxa de demanda potencial para frequentar pré-escola: 14,54% do total das crianças de 4 a 6 anos não estão frequentando esta modalidade de ensino no município.

A pesquisadora do INCID, Bianca Arruda, lamenta o fato de que para o Estado as creches ainda não são espaços destinados à educação de todas as crianças, pois, segundo ela, “a lógica do Estado é que o cuidado com as crianças ainda cabe apenas às mulheres, não sendo visto como um direito a ser garantido”. Uma das decorrências disso é que a ausência de creches atinge mais fortemente as mulheres mais pobres, que não podem pagar por creches particulares e que encontram uma dificuldade a mais de ingressar no mercado de trabalho por não terem com quem deixar seus filhos e filhas. “Ainda que essa situação venha sempre a reboque da luta das mulheres pelo direito ao trabalho, é preciso compreender que as crianças também são detentores de direitos e o Estado precisa garantir o cuidado, em horários integrais e contínuos. O Estado é obrigado a oferecer creches e pré-escolas às filhas e filhos das trabalhadoras e trabalhadores ou oportunizarem o acesso a elas, mediante procura pelo atendimento. É necessário olhar para o direito dessas crianças, exigir o acesso e os serviços de cuidado”, lembrou.

Plano Nacional da Educação tem novos desafios

A educação infantil é duplamente protegida pela Constituição Federal de 1988 (CF/88): tanto é direito subjetivo das crianças com idade entre 0 e 5 anos (art.208, IV), como é direito das/os trabalhadoras e trabalhadores em relação a seus filhos/filhas e dependentes (art.7°, XXV) . Ou seja, ela é um exemplo vivo da indivisibilidade e interdependência que caracterizam os direitos humanos, pois reúne num mesmo conceito, vários direitos: ao desenvolvimento, à educação e ao trabalho. Além da Constituição, o direito à educação infantil vem assegurado em outras normas nacionais, principalmente a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB (Lei n° 9.394/1996), o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA (Lei n° 8.069/1990) e o Plano Nacional de Educação – PNE (Lei n° 10.172/2001). Portanto, prevalece o princípio do interesse superior da criança (CF/88, art.227 e ECA), ou seja, nenhuma medida de natureza administrativa pode limitar o exercício de seus direitos e o seu pleno desenvolvimento. Além disso, tem que ser ressaltado o princípio da permanência na escola (CF/88, art.206, I), o qual implica na garantia de continuidade dos estudos, não podendo haver vacância no atendimento escolar.

Do ponto de vista legal, a oferta deve ser assegurada conforme a demanda da população como parte integrante da educação escolar pública, que precisa ser efetivada mediante o atendimento gratuito (LDB ART 4 – IV).  No entanto, apesar do reconhecimento jurídico presente na Constituição desde 1988, apesar de incluída no conceito de educação básica pela LDB desde 1996 e apesar da ‘prioridade absoluta’ que deveria ser destinada às crianças e adolescentes em todo esse período (CF/88, art.227, e ECA), o acesso à educação infantil em creches e pré-escolas está longe de se tornar realidade para grande parte da população em idade própria. Diferentemente do ensino fundamental, esta etapa foi historicamente relegada pelos administradores públicos. Baseado nisso, recentemente se definiu que uma das metas do Plano Nacional da Educação (Lei no. 13.005/14) é ampliar a oferta de educação infantil em creches de forma a atender, no mínimo, 50% das crianças de até 3 anos até 2024.