Portas abertas para a justiça social

Natália Mazotte
do Canal Ibase

Depois de mais de uma década de debates, a política de ações afirmativas parece estar amadurecendo no Brasil. Na semana passada, o Senado Federal aprovou um projeto de lei que tramitava há 13 anos para instituir cotas sociais e raciais em 50% das vagas de universidades e institutos tecnológicos federais.

A medida, que ainda precisa ser sancionada pela presidente Dilma Rousseff para começar a valer, representa um avanço na luta por justiça social e diversidade no ensino superior, mas especialistas alertam que o caminho para a igualdade de acesso à educação ainda é longo.

Foto: Renato Araújo/ABr

Marcelo Paixão, professor da Faculdade de Economia da UFRJ e um dos principais especialistas em desigualdades raciais no Brasil, lembra que só cerca de 10% das vagas do ensino superior foram preenchidas por cotistas em 2010, embora cerca de 70% das universidades já adotassem o sistema.

“O que já foi feito está aquém do necessário. Nós andamos para não sair no lugar. Depois de tantos anos de luta, o percentual do total de ingressantes em 2010 por cotas, segundo o Censo Nacional de Educação Superior, ainda é muito baixo. A iniciativa do senado é uma forma de fazer a roda acelerar e, portanto, é bem-vinda”, ressaltou.

Bem-vinda, desde que bem acompanhada, observou a socióloga e professora da Faculdade de Educação da UFRJ, Rosana Heringer. “Podemos assistir a uma efetiva democratização do acesso, desde que as universidades públicas se preparem para receber esses alunos, tanto adequando a formação complementar, quanto ampliando políticas de assistência estudantil, como bolsas e auxílios para transporte, que contribuem para a permanência dos cotistas”.

Embora comemore os avanços das ações afirmativas no Brasil, a professora da Escola de Comunicação da UFRJ Liv Sovik critica a falta de um debate que transcenda a mera opção pró e contra cotas entre os docentes. “Que papel tem a educação superior no universo geral da educação? O governo está muito preocupado com o PIB e o equilíbrio das contas, mas não tem um plano para a educação como um todo. É preciso saber o que estamos ensinando, pra que a universidade existe. Uma das coisas mais decepcionantes da atual greve é a falta de interesse dos professores nessa discussão”, afirmou Sovik.

Segundo ela, o senso comum relaciona erroneamente a entrada de cotistas a uma queda na qualidade do ensino. “A falta de preparo dos alunos que chegam das escolas públicas à graduação é um problema. Mas os alunos de escolas particulares também não estão preparados. A ideia de que uma educação de luxo prepara o aluno para o ensino superior é uma falácia”. Liv aposta que a motivação do estudante supera a defasagem escolar. “Tenho alunos que, mesmo sem uma trajetória em colégios de ponta, são mais motivados e, com isso, têm um desempenho melhor”, acrescenta.

A resposta a críticos que alegam que as cotas trazem prejuízo ao ensino deveria vir das instituições que já adotam ações afirmativas, mas ainda são poucas as que divulgam estudos sobre o desempenho dos cotistas. “Algumas universidades acreditam que os alunos podem se sentir discriminados e outras não publicizam seus resultados por questões políticas”, explicou Paixão. As pesquisas conhecidas dão conta de desconstruir a relação entre cotistas e mau desempenho, como as realizados pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e pela Universidade de Campinas (Unicamp).

Cotas sociais x cotas raciais

Pelo texto aprovado no Senado, metade das vagas será reservada para alunos que cursaram todo o Ensino Médio em escola pública. Desse total, 50% serão para estudantes com renda familiar de até um salário mínimo e meio por pessoa. A outra parte será destinada a alunos negros, pardos e índios e, neste caso, a distribuição deve obedecer a mesma proporção dessas populações em cada estado, apontada no Censo do IBGE.

A adoção de critérios de classe combinados com critérios de raça para a reserva de vagas não é ponto pacífico entre os defensores de ações afirmativas. Entre seus críticos está o pesquisador da UERJ João Feres Junior. “Dados da UENF (Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro) mostram que nos anos em que vigorou o sistema antigo [cotas para escola pública separadas de cotas étnicas] , 2003 e 2004, entraram respectivamente 40 e 60 alunos não-brancos – aproximadamente 11% do total de ingressantes. A sobreposição de critérios que passou a operar no ano seguinte derrubou esse número para 19”, argumenta em artigo intitulado “Inclusão no ensino superior: raça ou renda?”.

Além de importantes ferramentas para ampliar a representação social de grupos minoritários em locais de prestígio social, como é o caso das universidades, as cotas raciais contribuem com a diversidade. “As turmas da graduação são muita homogêneas, concordam ou fingem concordar sobre uma série de questões e isso traz um problema pedagógico, não é bom pro debate, pra dinâmica das aulas. A educação superior vem formando historicamente as elites brasileiras e, no Brasil, elas são brancas. É fundamental que os jovens convivam com diferenças”, declarou Liv.

Ainda é desproporcional o número de estudantes negros e indígenas que chegam ao ensino superior, em comparação com sua proporção na população, mas a sociedade brasileira demonstra estar cada vez mais aberta para o caminho da mudança e da inclusão.