Pescadores artesanais lutam para continuar pescando
Em junho deste ano, a Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO) realizou uma sessão do Comitê de Pesca em Roma, Itália, em que definiu um conjunto de diretrizes para proteger a pesca artesanal sustentável no contexto da segurança alimentar e da erradicação da pobreza. Segundo dados da entidade, 90% da mão de obra mundial do setor de captura de pescado é artesanal. No Brasil, eles estimam que haja em torno de um milhão de pessoas vivendo desta atividade.
Embora sejam muitos em número, não se pode garantir que a maioria deles tenha o principal documento para exercer a atividade: o Registro Geral da Atividade Pesqueira (conhecido como “Carteira do Pescador”).
– A situação do pescador artesanal no Brasil é difícil, pois sabemos que a maioria deles não tem o registro profissional definitivo porque é um processo demorado e muito burocrático. Os que dizem que tem ou estão com documento vencido ou têm apenas o protocolo, que não vale como documento legal – contou Flávio Lontra, 50 anos, pescador há 40 que é da Associação de Caranguejeiros e Amigos de Itambi. Atualmente, ele está assessorando a Secretaria de Pesca de Itaboraí, na região do Leste Fluminense do Rio de Janeiro.
Na mesa de Flávio, na Secretaria, repousa uma lista com 61 nomes. São pescadores artesanais que, através do órgão municipal, deram entrada no pedido de obtenção da licença, emitida pelo Ministério da Pesca. Quase um ano depois, eles ainda aguardam o documento definitivo, sem o qual não podem concorrer, por exemplo, aos editais públicos de financiamento para fornecer pescados para merenda escolar, uma fonte de renda real para quem exerce esta atividade.
– Eu não consigo entender realmente o que ocorre. Com esses 61 pescadores o procedimento foi o de trazer a equipe do Ministério até aqui para darmos entrada na documentação e, assim, garantir que tudo correria bem, sem atrasos. Mesmo assim, não temos resposta ainda de quando o registro vai chegar. A burocracia é grande e o Estado é lento na emissão desses documentos – contou o pescador.
Niterói é um dos municípios do Rio de Janeiro em que é possível ter uma noção da proporção de pescadores que têm o documento permanente. A Federação de Pesca do Estado do Rio de Janeiro (Fiperj) está produzindo um diagnóstico socioeconômico inédito da pesca no Estado, que engloba o Leste Fluminense, mas uma reportagem do jornal O Globo ano passado informava que haviam em atividade em Niterói cerca de 5 mil pescadores artesanais. Dados do Ministério da Pesca dão conta que apenas 189 deles já têm o Registro Geral de Atividade Pesqueira. Flávio assegura que esta diferença entre o total de artesãos da pesca e os que têm o registro definitivo se repete em outros municípios do país.
Uma das lideranças da Associação Livre de Aquicultura e Pesca de Itaipuaçu (Alapi), Paulo Cardoso da Silva, 66 anos e 25 como pescador artesanal, diz que há pelos menos 40 pescadores artesanais tentando se associar à Alapi, mas nenhum deles com documentação definitiva.
– Sem este documento o pescador fica sem acesso aos direitos básicos para a categoria, como o seguro defeso, por exemplo. O Ministério da Pesca é muito devagar na emissão do documento. Alguns colegas que entraram com o pedido do registro já estão há um ano esperando com o protocolo na carteira, mas sem poder acessar o seguro defeso por exemplo – explicou Cardoso.
Para ele a burocracia é grande e dificulta, mas o pescador ressalta que o Ministério também divulga mal as informações.
– É um problema de falta de informação também. O Ministério da Pesca até tem coisa boa pro pescador, mas há uma dificuldade de divulgar as informações, que não acabam chegando na ponta. Os pescadores são uma categoria que ainda precisa de muita informação e orientação _ diz Cardoso.
Para obter um panorama da situação da pesca artesanal no Estado, o Ibase está levantando dados do setor em 14 municípios do Leste Fluminense. A pesquisa faz parte do projeto Indicadores de Cidadania (Incid) sistema inédito de indicadores sociais do Ibase que já produziu quase 70 índices desta região, que está no entorno do Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro, da Petrobras – o Comperj. Adriana Cardoso, pesquisadora que está à frente do levantamento, diz que a ideia é criar indicadores sociais do setor da pesca artesanal e, assim, fortalecer a luta de quem atua na atividade.
– Não está sendo fácil, pois não há quase informações e diagnóstico sobre a pesca artesanal – contou a pesquisadora.
Mesmo sem muitos dados ainda, a equipe do Ibase já conseguiu saber que os pescadores artesanais no Rio de Janeiro são bem organizados. Segundo a equipe do projeto Incid o mapeamento feito até o momento já identificou 49 organizações no Estado que tem a pesca como atividade principal ou uma das atividades.
Paulo Cardoso da Silva, da Alapi, lembra que a categoria de pescadores sempre foi organizada, a começar pelas colônias de pesca, a forma de organização mais antiga. Hoje, em função dos impactos de empreendimentos, além da poluição das águas, eles se veem obrigados a buscar novas formas organização até para encontrarem soluções conjuntas para continuar vivendo da pesca artesanal.
– Temos hoje a necessidade de criar associações para conseguir financiamento para agregar valor ao produto, por exemplo. Construir os entrepostos, com frigoríficos. Ou fazer projetos de maricultura, fazendas de criação de pescados em cativeiro, em áreas onde a quantidade de pescado já está escassa por causa da poluição. E isso está ocorrendo. A Alapi é um exemplo e há outras associações na região do Leste Fluminense – contou.
Na Baía
A questão da poluição das águas é mesmo um problema que afeta profundamente a vida dos pescadores artesanais no Estado.
Em reportagem de abril deste ano do site Observatório do Pré-sal, do Ibase, a geógrafa Carla Ramôa Chaves, disse que restam hoje apenas 12% de área pescável na Baía de Guanabara. Em sua pesquisa, Carla fez um mapeamento dos empreendimentos em torno da Baía que sufocam a atividade pesqueira. Na reportagem, ela explica “que a área restante leva em conta as áreas de influência direta e indireta dos empreendimentos de grandes empresas causadoras de impactos ambientais no entorno, como refinarias, terminais e a Petrobrás. Mas há outros usuários da Baía, como a Marinha e o Exército. Os rios poluídos e até mesmo a Ponte-Rio-Niterói são outros fatores maléficos à pesca.”
– Em algumas áreas próximas a dutos, não é proibido pescar. Mas, como eles interferem na temperatura da água, os peixes se afastam da região. O próprio percurso das barcas do trajeto Rio-Niterói são um empecilho à pesca. Há também as barcas que vão para Paquetá. Tem uma área de segurança ali. O assoreamento em áreas da Baía, lixões, cemitérios de navios e a presença também do Exército, tudo isso vai minando a atividade e imprensando o espaço dos pescadores, que chegaram muito, muito antes de toda essa infraestrutura à Baía de Guanabara – disse Carla, ressaltando que mais de 46% do espelho d’água são tomados pela atividade petrolífera.
Por lutarem para conseguir continuar pescando na Baía, alguns pescadores têm sofrido ameaças e perseguição. Esta mesma reportagem alertava que em meio ao clima opressor no entorno da Baía, dois pescadores foram perseguidos e quatro foram encontrados mortos.
– Embarcações nossas foram recebidas a tiros certa vez – contou na reportagem do Observatório, Alexandre Anderson de Souza, presidente da Associação de Homens e Mulheres do Mar (AHOMAR), que disse ainda que em 28 comunidades que beiram a Baía a pesca está acabando.
Alexandre é de Magé e é um dos pescadores perseguidos por lutar contra a ocupação das águas da Baía pelos grandes empreendimentos do entorno. Ele está há pouco mais de dois ano sob proteção do Programa Nacional de Proteção aos defensores de Direitos Humanos. Mora com mulher em um quarto de hotel, em local desconhecido, bem diferente da casinha que morava na praia de Mauá.
No mar
Mas aqueles que pescam em alto mar também sofrem com o risco de poluição. Em Maricá, por exemplo, um novo projeto para construção de um novo resort – chamado Fazenda São Bento da Lagoa – pela empresa luso-espanhola IBD está ameaçando 150 pescadores da Restinga de Zacarias, nas margens da Lagoa de Maricá. Eles integram uma colônia que existe há cerca de três séculos na região.
Os pescadores chegam a pescar, hoje, cerca de 400 quilos de peixe e camarão por mês e com o resort temem que o despejo de esgoto in natura no mar e aumento de moradores reduza a quantidade de pescados e acabe por descaracterizar a região, já que estão previstas obras de urbanização no entorno, além de construção de shopping, centro hípico entre outros projetos associados ao resort.
No inverno, quando os peixes diminuem, segundo os pescadores locais, é costume dos moradores colher frutos na região para vender e garantir o sustento das 300 famílias que moram no entorno da lagoa. Nas dunas próximas, há plantas medicinais raras.
Paulo Cardoso, da Alapi, contou que o medo de que os recursos naturais, que são fonte de renda para as família da região, acabem levou esses pescadores a se organizarem e recorrerem ao Ministério Público para embargar obra, a construtora recorreu e o canteiro já está a pleno vapor novamente.
– O que preocupa os pescadores é a emissão de esgoto in natura no mar, que pode causar a mortandade de peixes. A Alapi está em parceria com a Secretaria de Meio Ambiente de Maricá, tentando construir um projeto para oferecer aos pescadores o trabalho de maricultura, que são as fazendas de pescados em cativeiros – contou Paulo.
Mas ele reconhece que não é uma tarefa simples, pois novamente esbarra na burocracia e lentidão dos órgãos ambientais que parecem não considerar a realidade dos pescadores e da atividade pesqueira artesanal na região
– A exigências de uma documentação complicada muitas vezes inavibiliza a criação de pequenas cooperativas, que ficam sem poder concorrer por editais de financiamento para se organizarem. O pescador acaba ficando à deriva, sem recursos para conseguir uma renda maior – contou o pescador.
Outro fator que, segundo Paulo, também tem ameaçado os pescadores locais é a construção do duto do Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro (Comperj), na praia de Itaipuaçu. Após muita conversa, em que os pescadores pleiteavam que o duto despejasse o resíduo a 10 metros da costa, a distância da praia foi fixada em apenas quatro metros. Lá, segundo Paulo, a construção do duto já afetou a pesca dos 80 pescadores artesanais da área.
– Nos três últimos meses já não pescamos quase nada – contou.
Com o pescado escasso, a burocracia do Estado para emitir a documentação permanente para o pescador, Flavio Lontra, da Associação de Caranguejeiros e Amigos de Itambi e assessor da Secretaria de Pesca de Itaboraí, diz que o impacto dos grandes empreendimentos acaba por criar uma situação ainda mais perversa.
– Tem sido comum nos territórios de abrangência do Comperj ser oferecido às colônias de pescadores cursos de todo o tipo de trabalho que sirva ao que eles acreditam ser bom para o ‘desenvolvimento’. Isso quer dizer cursos de pintor de parede à informática. Não se vê, curiosamente, a oferta de cursos que poderiam dar um incentivo à atividade pesqueira tradicional na região como: pintura de casco de navio, mecânica de motores etc. Quer dizer, a sensação que dá é que há um processo para descaracterizar a atividade principal desta região. Por isso que qualquer pesquisa, indicador como o Incid é benvindo para dar visibilidade à situação da pesca na região tanto para sociedade quanto para o poder público e, assim, fortalecer as lutas dos pescadores.
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