Violência contra as mulheres: o tabu do silêncio

Em março de 2013, pelo menos duas brasileiras foram vítimas de uma das maiores violências contra a mulher – o estupro – em dias diferentes, dentro da mesma van, que fazia um trajeto passando pela Lapa, no Centro do Rio de Janeiro. Uma delas é moradora da Baixada Fluminense e a outra vive nasceu e vive no município de Saquarema, na Região dos Lagos, uma das cidades que compõem o território do projeto Incid – Indicadores de Cidadania. Ambos os casos foram denunciados à polícia pelas vítimas, mas nenhum deles causou repercussão alguma na opinião pública ou levou a uma investigação séria. Dias depois, porém, uma estrangeira que estava visitando o Rio de Janeiro foi alvo do grupo, durante seu trajeto entre o bairro turístico de Copacabana e a Lapa, em companhia do namorado, na mesma van onde as outras duas mulheres sofreram a violência. O caso concentrou as atenções do país e foi parar nas páginas de jornais do mundo inteiro, expondo a situação da violência contra a mulher no Brasil. Sob pressão, a polícia foi em busca dos acusados e os prendeu. A resolução pontual, porém, não muda o quadro de violência contra as mulheres no país nem o aproxima da opinião pública.

A situação é ainda mais grave fora das capitais, onde o tema é mais invisibilizado, como explica Marilia da Conceição Pereira dos Santos, assistente social que integra o Movimento Articulado de Mulheres Amigas de Saquarema (MAMAS). Ao lembrar o caso da jovem moradora do município que foi vítima de estupro na van, no Centro do Rio, ela lembra que a denúncia havia sido feita em uma delegacia no município de Niterói e que a polícia não deu qualquer resposta ou sinal de investigação. ““A menina nunca havia tido uma experiência sexual. Tinha 20 anos naquela ocasião. A polícia não deu a atenção merecida, nem teve o cuidado necessário para lidar com o caso. Embora estupro seja considerado crime grave (é crime hediondo, segundo a constituição brasileira), na prática muitas vítimas até desistem de denunciar, pois as mulheres sofrem muito e são desrespeitadas no momento da denúncia. A mulher ainda é culpabilizada em nosso país.”
Marília ressaltou também que Saquarema é o 7o município de maior ocorrência de violência contra a mulher em todo o Estado do Rio de Janeiro, de acordo com o Dossiê Mulher 2014, elaborado pelo Instituto de Segurança Pública (ISP) – site http://www.isp.rj.gov.br/. Este ano, depois de muita luta, o movimento de mulheres do município conseguiu a criação de um Núcleo de Atendimento Especializado à Mulher (NUAM), para atendimento jurídico às mulheres. “Saquarema é uma cidade difícil para as mulheres, só na semana passada nove homens estupradores foram presos. E, de cada 100 atendimentos na delegacia, 66 dizem respeito à violência contra uma ou mais mulheres, inclusive menores. Elas estão acostumadas a ouvir dos policiais absurdos como sugestões para perdoarem os companheiros. À uma mulher com marcas de violência sentada à frente deles, os policiais dizem coisas como ‘esfria a cabeça, depois de um carinhozinho vocês fazem as pazes’”.

Municípios menores acabam escondidos nas estatísticas, já que não assustam pelos números absolutos. Mas, se levarmos em conta a população de cada localidade, o olhar muda. Saquarema tem pouco mais de 74 mil habitantes, porém um cotidiano atravessado por situações de violência contra a mulher. Em 2013, foram 36 estupros notificados, houve uma morte e 331 ameaças de agressão, além de 321 lesões corporais dolosas. O quadro se repete nos 14 municípios que fazem parte do Incid. Dados do Dossiê Mulher evidenciam o cenário. São Gonçalo está entre as cidades que possuem números mais alarmantes. Em 2013, foram registradas 19 assassinatos de mulheres, 259 casos de estupro e 3.711 ameaças de agressão a mulheres no município. Mesmo tendo em vista que a cidade é uma das mais populosas da região, os dados apontam a gravidade da situação. O cenário se repete em outros territórios acompanhados pelo Incid, como Magé, cidade de 271.440 habitantes, onde houve nove mortes, 95 estupros notificados e 974 ameaças de agressão. Isso sem levar em conta a subnotificação, já que boa parte das agressões nunca foram registradas.

Muitas vezes, o problema começa em casa. Em todo o país, 55.218 mulheres vítimas de ameaça do ano de 2013, praticamente a metade, 49,6%, foi ameaçada por companheiros ou ex-companheiros. Ou seja, 27.388 mulheres foram vítimas de homens do seu convívio direto e não de estranhos, como se costuma pensar. Isso significa que uma média de 75 mulheres sofreram esta violência a cada dia do ano. A estatística, que já parece alta, esconde uma realidade muito mais grave. Dos 14 municípios do Incid, apenas três têm Delegacias de Atendimento à Mulher (DEAMs), núcleos previstos na Lei Maria da Penha (Títulos III e V) como forma de combate à violência: Niterói, São Gonçalo e Nova Friburgo.

Indicadores sob a perspectiva das mulheres
Quando se olha a questão de forma mais geral, perdem-se contornos importantes de cada território. Por isso, a equipe do projeto Incid produziu dois indicadores mais específicos sobre o tema. Um deles é relativo à Situação da Desigualdade de Gênero no Acesso ao Emprego. O outro é Situação da Desigualdade de Gênero na Remuneração.
O objetivo é que esses indicadores evidenciem a realidade de cada um dos 14 municípios. Em Guapimirim, por exemplo, há uma peculiaridade. A cidade é hoje utilizada por muitas trabalhadoras como “cidade dormitório”. É significativo o número de homens e principalmente mulheres que passam a semana inteira na capital do Estado do Rio de Janeiro trabalhando e só retornam nos finais de semana. Isso porque as alternativas de emprego no local para as mulheres são bastante escassas. Com isso, é difícil acompanhar o dia a dia dos filhos e filhas expostos à violência e até de mapear esse assunto na vida de cada família. Julieta Rossi, da Associação Cultural Nascente Pequena e membro do Conselho da Mulher de Guapimirim, fez uma pesquisa entre setembro de 2013 e fevereiro de 2014 visitando todos os bairros do município. Ela, uma das referências da luta pelo direito das mulheres na cidade, afirma que, em pelo menos 50% das casas há situações de violência contra a mulher ou envolvendo vulneráveis, como crianças. Houve também casas em que ela bateu à porta várias vezes, mas a responsável sempre estava fora, trabalhando, o que impediu muitas entrevistas.

Essa realidade local também dificulta a reunião das mulheres para atividades e formações de redes políticas relacionadas ao tema. A solução, na opinião de Julieta, passa necessariamente pela criação de postos de trabalho e alternativas de geração de renda dentro do próprio município, seja para as mulheres que deixam suas casas para trabalhar, seja para aquelas que não possuem renda alguma: “A dependência financeira, de um trabalho que as explora ou dos próprios companheiros, é algo que só mantém as situações de violência. É preciso investir em formações voltadas para o associativismo, a Economia Solidária. E, mesmo assim, é difícil. Com frequência convivemos com mulheres impedidas de sair ou agredidas pelos maridos, que não querem que elas ganhem o próprio dinheiro”, conta ela, que está à frente de projetos como o Maquinetando – Fazendo Arte na Máquina, uma aposta na geração de renda por meio da costura.

O caminho, porém, ainda é longo e tortuoso. Começa da percepção da própria violência como algo complexo e que vai além da agressão física em si. Muitas mulheres são vítimas diárias de violência e sequer identificam. É o que ressalta a assistente de pesquisa do Incid, Daiana da Silva: “Nos municípios da área do Incid em que há redes de atendimento à mulher, como Nova Friburgo e São Gonçalo, percebemos que isso ocorreu como resultado de um histórico processo de luta das mulheres. Está aí a importância do fortalecimento da rede do Incid, até mesmo porque há cidades em que a violência contra a mulher é vivenciada de forma intensa e não há serviços de atendimento específicos para elas.”

Daiana conta que, durante os encontros do Incid, é muito recorrente o surgimento do tema nas rodas de diálogos, entre outros encontros. No entanto, em muitas cidades a percepção da maioria das mulheres ainda está relacionada apenas à violência física. Nesse sentido, outras formas de violência sofridas cotidianamente ficam ocultadas, assim como a violência psicológica muitas vezes sofrida dentro de casa e a violência do próprio estado, que reproduz o machismo em práticas e na ausência de políticas ou equipamentos públicos de suporte à vida das mulheres. A ausência de creche é uma violência, por dificultar a inserção da mulher no mercado de trabalho. E os dados apresentados pelo Incid, no Indicador de Situação da Demanda por Creche,revelam que não se chega a 40% de cobertura da demanda potencial em nenhum dos municípios da AAI. “As violências contra a mulher são muitas como, por exemplo, a mortalidade materna por ausência de um sistema de saúde que dê suporte. É nesse sentido que trabalhamos junto com os movimentos dos territórios, para que todas essas violações sejam compreendidas ”, explica a assistente de pesquisa. A elas se somam falhas no sistema de segurança pública, que também vitimam mais mulheres; as agressões verbais praticadas por filhos, irmãos, pais; além do assédio vivido nas ruas. Até mesmo a falta de qualidade do transporte público afeta mais às mulheres do que os homens. Leve em conta uma mulher cujo meio de transporte mais próximo a deixa a 20 minutos de casa, em um local de ruas escuras. Tudo isso afeta a liberdade, a autonomia, e até a garantia da vida das mulheres.

São muitas as nuances de exposição à violência. Os territórios do Incid deixam algumas disparidades bastante evidentes. Em São Gonçalo, por exemplo, onde o movimento de mulheres tem se fortalecido cada vez mais, muitas famílias são chefiadas por mulheres, frequentemente em moradias muito precárias. Como mostram dados do sistema Incid para a região, cerca de 20% das moradias têm esgoto a céu aberto. No campo da saúde, a situação também é grave. Para se ter uma ideia, mais de 9% dos bebês nascem com menos de 2,5kg, o que aponta falta de acesso ao pré-natal, entre outras questões para o cuidado durante a gravidez.

O contexto do município traz à tona ainda outra questão: o racismo. A maioria das mulheres expostas a situações de pobreza, nas suas múltiplas dimensões, são negras. A situação afeta a todas e todos os cidadãos e cidadãs, mas, no contexto de políticas públicas que não dão conta do racismo institucionalizado no Brasil, as mulheres negras vivenciam um cotidiano ainda mais árduo, o que precisa ser levado em conta na formulação de políticas públicas. Foi o que ficou visível em uma ocupação recente realizada na Avenida Santa Luzia, no bairro Jardim Catarina, organizada pelo Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST). Ali, cerca de 700 famílias reivindicavam moradia digna em um município cujo deficit habitacional chega a 20%. Logo ao chegar ao local, o perfil das famílias saltava aos olhos: de um lado para o outro, mulheres, em sua maioria negras, carregavam seus filhos nos braços, nos ombros, na barriga, ou mamando nos seios. Eram muitas as que estavam solitárias, vigilantes, preocupadas com as crianças. Sem a ajuda de companheiros e, em alguns casos, sem apoio da família no local, eram elas mesmas as responsáveis por garantir a segurança de todos, enquanto construíam uma barraca no acampamento e frequentavam as assembleias.

Foi nesse cenário que surgiu o movimento Três Negras de Axé, em São Gonçalo. Rosilene Rodrigues, nascida pelas mãos de uma parteira e criada no bairro do Jardim Catarina, é uma das integrantes. Ela acompanha o Incid desde as primeiras reuniões e aposta na articulação criada pela rede do projeto para o enfrentamento do problema: “Há famílias em que a filha, a neta, a bisneta, são todas mães solteiras, tendo que trabalhar e cuidar da casa sozinhas. A situação de pobreza é extrema e elas ficam expostas à violência, seja nas ruas, seja quando estão em relações com companheiros. Para reverter isso, apostamos na cultura. Dança, capoeira, encontros lúdicos. É por aí que chegamos até elas.”

E o trabalho tem dado certo. Enquanto as mulheres participam dos encontros, há também assistência e atividades para os filhos, netos. O grupo percebeu que seria necessário atender à família toda. “Já nos decepcionamos muito com projetos que começam e de repente acabam. Nossa expectativa com o Incid é grande, porque já tem uma rede de relações que está sendo construída e que está fortalecendo a todas. Mas há muito a ser feito”, disse Roseli.

Um dos trabalhos do Fórum de Combate à Violência contra a Mulher (FEM) no Estado do Rio de Janeiro é o fortalecimento do discurso feminista, mas sempre potencializando as ações de cada território. É esse o mote do Incid e de muitas outras organizações, como afirmou Iara Amora, membro do FEM durante o seminário Desafios Atuais do Feminismo, realizado recentemente: “Não existe feminismo, se ele for apenas um debate acadêmico, um discurso que não chega às companheiras em cada local. O feminismo se faz nas ruas, nas favelas, nas comunidades. Se faz em todo lugar”.

De olho nessa questão, o projeto Indicadores de Cidadania irá construir um novo indicador em 2015. Ele terá o nome de “Direito à participação: Participação cidadã pelos direitos das mulheres”. Além disso, também estão sendo produzidos os Mapas da Cidadania, onde será trabalhado o Direito à Vida Segura das Mulheres. Guiados pelas metodologias de mapeamento participativo, a nova ferramenta do Incid se propõe a realizar um mapa das organizações e instituições que integram a Rede de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres (Secretaria de Políticas para as Mulheres/ Presidência da República), afim de dar visibilidade às violações e questões relativas ao gênero. O processo inicial está sendo construído nos municípios de Silva Jardim, Casimiro de Abreu, Saquarema, São Gonçalo, Niterói e Guapimirim.