Cândido Grzybowski: ‘Temos que conquistar a cidadania, porque somos instituintes do poder e da economia; cabe a nós regular o mercado’
Por Eliane Bardanachvili/CEE-Fiocruz
Avaliar a cidadania a partir de “indicadores baseados em gente”, não em negócios, foi o motor da criação do Sistema de Indicadores de Cidadania (Incid) pelo Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase). Trata-se de um conjunto de itens que se articulam e buscam deslocar o olhar sobre a forma de se observarem as condições de vida, sem tomar o Produto Interno Bruto (PIB) como base. “O PIB exclui agendas. É um indicador para saber se os negócios vão bem; o que não está no mercado fica fora”, analisa, nesta entrevista ao blog do CEE-Fiocruz, Cândido Grzybowski, diretor do Ibase, à frente da construção do sistema de indicadores.
Metodologia que o Ibase quer universalizar, para que seja apropriada por qualquer território ou grupo, o Incid começou a ser contruído em 2009 e prevê quatro dimensões de cidadania – cidadania vivida (usufruto ou não de direitos), cidadania garantida (condições criadas pelo Estado para acesso a esses direitos), cidadania percebida (forma como as pessoas percebem-se como cidadãos e cidadãs com direito a ter direitos) e cidadania ativa (ação social, engajamento e participação), e três conjuntos de direitos – direitos coletivos, relacionados aos bens comuns; direitos sociais, econômicos e culturais, relacionados à manutenção e reprodução da vida; e direitos civis e políticos, relativos a igualdade e liberdade, participação e pertencimento. A articulação dessas dimensões e direitos compõem o sistema de indicadores proposto pelo Ibase para medir o que seria a cidadania efetiva, isto é, tanto aquilo a que uma população tem acesso quanto aquilo que falta e pelo qual ainda é preciso lutar. “Desenvolver consciência de direitos é fundamental para se poder lutar por eles, isto é, a cidadania ativa”, diz Cândido.
Testado inicialmente nos 14 municípios da área do Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro (Comperj), o projeto interessou às Nações Unidas e deverá tornar-se o meio de a sociedade civil acompanhar o cumprimento pelos países dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, lançados em setembro de 2015. A parceria com a ONU deverá se concretizar apesar de alguns senões, a começar pela própria designação que foi dada aos objetivos: “Tenho uma questão de fundo: o que tem que ser sustentável é a sociedade, não o desenvolvimento”, observa Cândido. Mas foi justamente esse olhar crítico sobre os ODSs e a abrangência do Incid que interessaram às Nações Unidas. O relatório alternativo de acompanhamento baseado no Incid levará a uma maior visibilidade do sistema, aumentando-se as chances de que seja utilizado pelos mais diversos grupos.
O trabalho inicial no Comperj foi realizado por uma equipe de dez pesquisadores do Ibase e 20 articuladores do território, recrutados de organizações locais. O processo da aplicação do Incid na região foi analisado na Conferência Cidadania Efetiva e Direitos Humanos, realizada em 2014, reunindo produtores de dados e formuladores de políticas, e está apresentado na publicação A invisível cidadania dos trabalhadores do Comperj. “A conferência de 2014 foi o momento de assegurar que o sistema funciona e questionar os produtores de dados e formuladores de políticas”, conta Cândido. “O dado é uma questão de cidadania”, resume.
Avaliar a cidadania e repensá-la é um caminho para se enfrentar o cenário de crise econômica e política que o país atravessa. Para Cândido, a ida às ruas em 2013, com uma agenda “muito genérica e cada um com seu interesse”, mostrou que “não temos uma cidadania organizada”. Ele considera que, nos anos de governo do PT, “a essência não foi mudada” e, no que diz respeito ao desenvolvimento, “ampliou-se o desenho proposto pelo presidente da ditadura militar Ernesto Geisel. “O Brasil Grande, com Belo Monte, a transposição do rio São Francisco”, enumera. “É o neodesenvolvimentismo com inclusão social”.
Cândido considera que, nas bases atuais, é difícil que o país se recupere. E só está otimista quanto a uma possibilidade de melhora no cenário: conectar os muitos movimentos de resistência que atuam de forma localizada no país e no mundo. Existem resistências sistemáticas emergindo, totalmente novas, territorializadas que não estão conectadas. Conectá-las pode nos trazer um novo sentido”.
Que tipo de demanda o Ibase detectou para construir os indicadores de cidadania?
Há um velho debate, que começa na emergência da globalização neoliberal e na radicalização de tudo pelo mercado, que tem a ver com tomar o PIB [Produto Interno Bruto] como base para se avaliar alguma coisa. O PIB exclui agendas. Ações como cuidar de velhos, fazer nascer crianças, fazer comida em casa não acrescentam nada ao PIB. É um indicador para saber se os negócios vão bem; o que não está no mercado fica fora. Essa crítica foi aceita pela ONU, que criou o IDH [Indicador de Desenvolvimento Humano], ampliando a visão. O IDH é um indicador-síntese de três variáveis – PIB, educação e saúde. Isso deu outra qualidade à avaliação, é um indicador mais universalizante, baseado em gente. O PIB per capita é negócio dividido por gente, mas não é baseado em gente. Só que foi publicado agora [dezembro de 2015] o IDH referente a 2014 e o Brasil baixou uma posição, por causa do PI [os indicadores referentes a esperança de vida ao nascer, expectativa de anos de estudo e média de anos de estudo continuaram melhorando, levando o IDH brasileiro, de 0,752 para 0,755; o avanço não foi maior devido à queda da renda]. Uma crise não muda os índices de educação, porque ninguém tira de alguém os anos de escolaridade. Mas o PIB pesa muito no indicador. Precisávamos de mais indicadores estruturais de qualidade de vida.
De que forma essa reflexão levou ao projeto do Incid?
O Ibase tem como foco a cidadania. Pensamos, então, em avaliar a cidadania, que é também avaliar a qualidade da democracia. Mas o que avaliar? Qualquer definição política mais consistente aponta cidadania é o direito a ter direitos, que o cidadão é titular de direitos. Costuma-se falar em direitos humanos e em direitos econômicos, sociais e culturais, mas em em direitos civis e políticos, que são parte da democracia, e de direitos coletivos [relativos aos bens comuns] que não têm legislação clara. Atmosfera é de todos, é um comum, mas foi colonizada por emissões. Quando falamos em conservação, em preservar, isso que é visto como limite ao desenvolvimento, mas, na verdade, estamos falando de grandes comuns, coisas fundamentais para haver vida. Os direitos coletivos não são divisíveis. Já os direitos civis e políticos são iguais para qualquer pessoa; os econômicos, culturais e sociais têm a ver com a manutenção da vida e se diferenciam em função das necessidades. Saúde, água e participação são direitos de naturezas diferentes. A novidade da elaboração do Ibase é pegar todo esse conjunto e considerar como direitos de cidadania. Os estudos mais progressistas, de esquerda, costumam enfatizar os direitos culturais, econômicos e sociais. No entanto, nós passamos por uma ditadura, não dá para ignorar liberdade e igualdade, direitos civis e políticos, nem os direitos comuns, que surgem com o debate ambiental, relacionados à vida. É uma nova frente de direito à cidadania.
As ideias e as bandeiras do sociólogo Herbert de Souza, o Betinho [fundador do Ibase, morto em 1997] nortearam esse projeto?
Betinho foi muito marcado pela geração dele, baseada na Revolução Cubana, em justiça social. No exílio, ele muda e começa a escrever sobre o valor da democracia e chega à ideia de cidadania, desenvolvendo todo um esforço voltado a isso, como na Ação da Cidadania contra a fome e a miséria e pela vida [lançada em 1993, por Betinho]. Temos que conquistar a cidadania, porque somos constituintes e instituintes do poder e da economia, cabe a nós regular o mercado, não é o mercado que vai se regular por ele próprio.
Em que o Incid diferencia-se dos inquéritos populacionais como a Pesquisa Nacional de Saúde ou a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (Pnad)? Esses estudos apontam, afinal, condições de acesso à cidadania.
O Incid é um critério de leitura, não um produtor de dados. É um olhar sobre os dados. E constata vazios nesses dados. Na conferência que fizemos em 2014, reunimos quem produz dados, como o IBGE, o Data SUS, com quem faz políticas. O Data SUS [banco de dados do Sistema Único de Saúde, com acesso aqui], por exemplo, tem dados de doenças, não de saúde, porque registra apenas quem vai ao sistema. Quem não vai não é registrado, não é visível. E quem são os que não vão? Aqueles que não têm acesso. Os dados têm sentido para avaliar políticas, mas não medem o quanto as políticas chegam a todos; estão voltados para a gestão da saúde, para se saber qual a demanda em cada área, mas, do ponto de vista da cidadania, criam-se invisibilidades. Para o IBGE, o critério de coleta é operacional, em setores censitários, com no mínimo 50 moradores. Uma favela que não tem 50 moradores não é registrada como favela, um grupo vivendo na margem de um rio some no meio de outros. Além do mais, a nomenclatura do IBGE para as favelas é aglomeramento subnormal. Mas o que é subnormal, a favela ou a cidade? Além de se invisibilizarem esses moradoes, desqualificam a cidadania ali. O representante do IBGE respondeu dizendo que nunca tinham pensado sobre isso e que haviam adotado uma definição da ONU. O dado é também uma questão de cidadania. Isso nos mostra o potencial dos indicadores do Ibase.
O Incid busca dar conta da complexidade e da abrangência do conceito de cidadania…
A sigla Incid remete à ideia de incidência, à ação de incidir. Consultamos o demógrafo Paulo Jannuzzi, do IBGE [hoje, titular da Secretaria de Avaliação e Gestão da Informação (SAGI) do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS)], que faz as estatísticas do Bolsa Família, e é maior pesquisador de indicadores do país, sobre o que poderiam ser os indicadores de direitos e ele nos sugeriu não buscar um índice único, que é o que mata os indicadores que se tentam produzir. O IDH é um número, uma síntese; tecnicamente é possível, mas isso mascara as desigualdades. Para o Ibase não dá. Para nós importa mais a violação, o quanto a cidadania está sendo negada, do que o quanto melhorou. Quem sofre não sofre de forma igual os problemas. Ao fazer uma síntese, isso fica mascarado. O Jannuzzi nos disse: “vocês têm liberdade para fazer, vocês não são o Estado”.
O trabalho, então, foi feito considerando-se um conjunto de direitos…
Ampliando o espectro para além dos direitos oficiais, agrupando-os, para termos um critério de organização, e adotamos a divisão entre cidadania vivida, percebida, garantida, ativa… Os dados do IBGE, por exemplo, referem-se apenas à cidadania vivida; os do SUS, ao garantido. Em relação à educação, a matrícula relaciona-se à cidadania garantida, não trata da vida de quem estudou ou daquilo que a pessoa aprendeu ou não; já o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) é da cidadania vivida, é uma avaliação. Mas há pessoas que acham que não têm direito à educação de qualidade. Aí, estamos tratando da cidadania percebida. E não há dados sobre isso, só a partir de pesquisas de opinião – em geral, mais voltadas à percepção que os cidadãos têm do governo. Desenvolver consciência de direitos é fundamental para se poder lutar por eles, isto é, a cidadania ativa.
Os indicadores foram testados nos 14 municípios da área do Comperj. Como se deu essa definição?
O projeto foi desenvolvido inicialmente para ser apresentado a um instituto canadense – Betinho havia se exilado no Canadá e havia uma aproximação com o país –, que se interessou pelo trabalho, mas acabou sendo fechado, com a eleição de um governo conservador. O Ibase ficou em crise, sem financiamento a seus projetos, e a Petrobras nos procurou. Apresentei o projeto do Incid e nos disseram que poderiam financiar se realizássemos no território do Comperj e que teríamos autonomia para fazer. Apareceriam as vozes que não tinham aparecido até então. A instalação do Comperj foi a imposição de uma decisão empresarial em um território, ignorando-se que 2,8 milhões de pessoas vivem lá. Expliquei que a concepção do Ibase era a de municiar a cidadania para a luta por direitos, chegar à cidadania ativa e alimentá-la; o sistema funciona se a cidadania o aceita e o assume. Para nós, teria sido mais interessante, pela complexidade, trabalhar na região metropolitana do Rio de Janeiro, pois poderíamos usar os dados da Pnad. No território do Comperj, não usamos porque esses dados teriam que ser quebrados, eles não valem para o município, há mais dados maiores do que dados localizados.
E o que esses indicadores revelaram a partir das quatro categorias de cidadania avaliadas? É possível depreender que cidadania é essa?
Tem muita violação. Fizemos uma publicação chamada A invisível cidadania dos trabalhadores do Comperj. A Petrobras teve que engolir. Não conseguimos nenhum dado da Petrobras, do poder público local, das empreiteiras, das pousadas onde os trabalhadores viviam. Não conseguimos saber salário, de onde vinham, sua escolaridade, condições de vida, que direitos foram violados. Uma esforço sistemático de não fornecerem informações, de invisibilizar essas pessoas. Trabalhamos com dados disponíveis de órgãos como o IBGE, Ministério do Trabalho e Emprego, Dataprev, Datasus, Justiça do Trabalho, com estudos produzidos pelo Dieese buscando a maior aproximação possível das questões locais. Conseguimos fazer um grupo focal com jovens que haviam sido demitidos. Agora, precisamos fazer Incidinhos, pesquisar situações específicas. Todas as crianças estão na escola, sim, mas a que custo? Têm que andar dez quilômetros? Merenda escolar é universal, mas nessa escola não tem… O registro de violência contra a mulher tem que levar em conta se é preciso pegar um ônibus no município para registrar em outro. Isso pode ser detectado.
A aplicação do Incid no Comperj contou com a participação de pessoas locais?
Temos uma equipe de dez pesquisadores no Ibase e mais 20 no território, articuladores locais, provenientes de organizações de lá. Alguns municípios, como São Gonçalo, têm mais de um articulador. Outros dividem um mesmo articulador. A Petrobras nos informou que havia cerca de 50 organizações na região. Fizemos o autocadastro de organizações, animando os moradores a identificar e registrar todos os espaços existentes. Queríamos saber se existiam outros grupos organizados. A organização não precisava estar legalizada. Deu um banco enorme! Muito mais de 50!
A proposta do Ibase é que o sistema de indicadores possa ser apropriado por grupos, comunidades. Como está se dando essa apropriação no próprio território do Comperj?
Nossa prova de fogo é mostrar que é plausível, que é simples, para eles continuarem. Temos que ser totalmente transparentes quanto a como fazer. Vamos dar um curso agora para eles atualizarem isso. Estão também montando uma rede de cidadania nos 14 municípios. Eles têm várias realizações, mas cada um no seu canto. Agora ficarão em rede naquele território.
E em relação a outros territórios, grupos, movimentos sociais, como divulgar a existência do Incid e promover sua apropriação?
Esse é um deasfio para nós. Um grupo que não foi introduzido ao Incid, provavelmente, vai precisar de ajuda, mas o sistema está concebido para ser apropriado. Temos dois sites, o Cidadanias, com os relatórios, e o Incid, que apresenta todo o sistema. Esse desafio será vencido se fizermos um trabalho de impacto nacional. Temos uma proposta, ainda sem financiador, para analisar o pós-Olimpíadas. A concepção que vale é a de cidade global ou a de cidade cidadã? Queremos aplicar o sistema do Incid para sabermos de que cidadania estamos falando. Temos também a proposta de apresentar o Incid como leitura alternativa dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODSs) [que compõem a Agenda 2030].
De que forma isso será feito?
O documento dos ODSs tem metas, mas não indicadores. Fui procurado desde a Rio+20 [2012] para participar da elaboração dessa agenda, mas caí fora. Expliquei ao Rômulo Paes [diretor do Centro Mundial para o Desenvolvimento Sustentável (Centro RIO+), ligado às Nações Unidas, que acompanhará o cumprimento dos ODSs pelos países], que meu problema é de concepção. Quem tem que ser sustentável é a cidade e o planeta, que são a causa do desenvolvimento. As necessidades são da sociedade, não do desenvolvimento. Tenho um problema de fundo. O Rômulo no ato sacou: “vocês têm soluções que nós nunca vamos conseguir encontrar, porque temos um limite, somos ONU, uma reunião de governos; vocês estão além e têm a liberdade de fazer isso”. Foi aceito na ONU haver um relatório-sombra do cumprimento dos ODSs, integrado ao relatório oficial, e ele quer um relatório-sombra da situação do Brasil, que deverá se basear nos indicadores de cidadania. Vamos fazer um seminário em janeiro para detalhar o Incid para ele e sua equipe. A própria ONU deverá financiar esse relatório, em troca de o Brasil dar sua contribuição com a experiência do Ibase. Serão sempre publicados juntos o relatório oficial e o alternativo.
A apropriação do Incid pelas Nações Unidas e a avaliação dos ODSs a partir desses indicadores vai colaborar para divulgá-los, como se pretendia, não?
Sim. Pode ser maravilhoso, pode dar muita visibilidade aos indicadores.
De que forma podemos analisar o cenário de crise política e econômica em que o país viveu em 2015, do ponto de vista da cidadania?
Tenho insistido em que há um esgotamento da onda democrática dos últimos 30 anos. Lula parecia ser o começo de uma nova onda, mas, na verdade, é o ponto máximo dessa onda, esgotando a força dela, aceitando as regras do jogo. O governo petista é uma aliança do empresariado com condicionalidades sociais. Escrevi um artigo em 2004, falando do PT, fazendo uma análise a la Gramsci, sobre como se compõem as alianças, apontando uma aliança empresarial-sindical. A CUT [Central Única dos Trabalhadores] foi decapitada, não aparece mais tão importante como liderança. E a CUT veio da luta, tendo gerado o próprio Lula! Se olharmos bem há uma perda de sentido nos sindicatos. Ao fazer a aliança, Lula divide o governo, uma parte para os movimentos sociais e outra para o agronegócio. Põe, de um lado, o ministro do Desenvolvimento que foi da Sadia [Luís Fernando Furlan] e, de outro, a ministra do Meio Ambiente Marina Silva. Há coisas boas, universidades públicas, por exemplo, que no governo anterior tinham parado nas criadas pela ditadura. No entanto, algumas universidades têm financiamento privado, e isso não é exatamente garantir direitos; é, em parte. A agenda de 2013, muito genérica, tendo cada um com seus interesses, algo bem anárquico, mostrou que não temos cidadania organizada. Há uma nova cidadania emergente. O que aconteceu em São Paulo [a ocupação das escolas estaduais pelos alunos, em novembro de 2015] pode ser a origem de algo novo, totalmente fora do que vínhamos vivendo.
Considera possível que se concretize o impeachment da presidente Dilma?
Impeachment ou não, não é exatamente a variável. A variável é que quem está podendo impor e já ganhou com Dilma é uma agenda extremamente conservadora de ajuste para salvar negócios, agenda do agronegócio, de mais exportação, de financeirização de tudo, sem reforma de base. Como disse o candidato a presidente pelo PCB, Mauro Iasi, fomos dominados pela ideia de desenvolvimento com inclusão social; não surgiu uma ideia alternativa de desenvolvimento, com uma outra economia. No que diz respeito ao desenvolvimento, o PT ampliou o desenho que Geisel [Ernesto Geisel, presidente da República no regime militar], o Brasil Grande, com Belo Monte, transposição do rio São Francisco, neodesenvolvimentismo com inclusão social. A essência não foi mudada. Ao surgir a crise mundial, ela nos afeta porque ficamos dependentes de exportação. É o pior desenvolvimento possível. Quando se pensou em mobilidade, pensou-se em carro individual, quando se pensou em saúde, pensou-se em plano de saúde. Isso é privado, é negócio. Essa cidadania está difusa.
Por que chegamos a esse cenário? O que levou a que o mandato da presidente eleita ficasse em risco? Foram essas alianças? A governabilidade custou caro?
Dilma não é uma expressão de luta, é uma gerentona, como ela mesmo se definiu. Não tem uma legitimidade de origem, não se fez na luta como Lula. Houve também os erros da estratégia. Essa aliança do negócio com o sindical não tinha como dar certo. Dilma foi a contragosto às conferências, é stalinista, tem aquela formação marxista de “eu sei o que fazer, não preciso consultar”, foi rompendo o que lhe dava governabilidade. Hoje, a grande dificuldade é defender Dilma. Defende-se o não golpe, porque pode ser pior, mas não se está defendendo uma solução. A vida está piorando para a maioria, o desemprego voltou, o salário mínimo está perdendo o poder de compra, porque isso depende de o país crescer. E o país deixou de crescer porque a China decidiu crescer menos e isso afetou as exportações brasileiras, ou porque a Europa não encontrou seu caminho. É a financeirização que define, que dá notas. Os governos são avaliados pelo setor privado, pelo mercado, que avalia mal, nem foi capaz de prever, por exemplo, a quebra do banco Lehamn Brothers.
O que é possível fazer?
É preciso voltarmos a construir sujeitos coletivos que digam alguma coisa, reconstruir o movimento sindical, que não representa mais nem a sua base; reconstruir o MST, que tem uma organização, mas não dá conta dos indígenas, dos pescadores.
Como podem emergir esses movimentos?
Leva tempo. Lembramos o que foi a origem do movimento sindical. Ninguém é predestinado, os atores se fazem na luta, na história. Resistências existem, mas não há ainda lideranças novas. O Estado não está se desmontando, porque, bem ou mal, construímos um Estado melhor, um Judiciário melhor, uma Polícia Federal melhor. Eles estão segurando a barra. Mas o Banco Central ainda é a mesma caixa preta privatizada. Não se fez nada em relação aos detentores da dívida pública, pelo contrário, todo ajuste é voltado a como pagá-los. Não se vê problema nisso, sim no gasto constitucional com saúde e educação. Estamos em um impasse.
É possível reconstruir o país, passado o impasse do impeachment?
Nessas bases não há como recuperar o país. Dilma teria que ser muito ousada. Tem legitimidade para isso, mas não é ousada, não é estadista. E em seu entorno não se vê ninguém. Saídas dependem da cidadania. A manifestação de 16/12 foi mais importante do que a de domingo, mas foi pequena. O que a une? Simplesmente ser contra os que se manifestaram domingo, mas do que apoiar Dilma. Ela está prisioneira dessa política. Ao optar pelo [Joaquim] Levy [ministro da Fazenda] tornou a situação ainda pior. Estava cometendo erros desonerando esse setor e aquele, por conta das alianças. Perdeu base. Não era o que ela devia fazer.
Não está otimista…
Estou otimista com o seguinte: há muitos movimentos no mundo, mas que não estão conectados. Veja, por exemplo, a questão da mineração. Como é localizada, os movimentos de resistência são localizados. Só que mineração há no mundo inteiro – Austrália, Brasil, África do Sul, Moçambique, porque há uma disputa por recurso natural. E se olharmos contra quem se está lutando, sempre serão uns dez grupos, os grandes grupos, as grandes corporações. A Vale, a Samarco. Existem resistências sistemáticas emergindo, totalmente novas, não são aqueles da luta por salário, porque esses defendem as minas – e são os que estão no poder, os que apoiam a Dilma. Tem os que lutam por um outro tipo de coisa; essa resistência contra grandes projetos é sobretudo do pessoal que vive em território atingido. Há resistências territorializadas que não estão conectadas. Conectar isso apontaria um novo caminho enorme, nos daria um novo sentido, inclusive do ponto de vista mundial. A inspiração teria que vir da cidadania, mas ela está velha também, acomodou-se com o governo Lula. Muitos melhoraram de fato de vida, ganharam renda, compraram carro, mas os problemas de fundo são da velha agenda nunca resolvida. Como criar vozes mais audíveis? Encontrando os nós, o que liga. A comunicação é estratégica, é preciso criar imaginários mobilizadores. Isso é uma tarefa coletiva. A luta gera muitas lideranças. O imaginário ajuda a luta, fortalece a luta.
O indígena que está resistindo ao agronegócio pode descobrir que tem a ver com o MST, com a agroecologia. Essa tarefa de reconstruir os sujeitos tem que ser feita. O MST, que criou uma forma de lutar contra o latifúndio, tem que fazer uma virada. O latifúndio mudou, o latifúndio, hoje, é capital, é o agronegócio. Não se luta contra a terra improdutiva, mas contra o modo como se produz. É uma virada de agenda e eles estão com dificuldade de fazer isso. A CUT hoje eles representa o oficial, está defendendo o status quo, prefere defender uma empresa do que defender o trabalhador. Temos que construir resistências. É um trabalho grande, uma tarefa gigante que temos pela frente. Que é possível, é…
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